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Reflexão

terça-feira, 23 de agosto de 2011


José Bitu Moreno é médico, com mestrado em São Paulo, doutorado na Alemanha, e professor do curso de Medicina em Marília. Tem, no entanto, um item do seu currículo que, após toda essa trajetória, chama muito a atenção, ele é um vivente da Serra Negra. Nascido em Várzea Alegre, é produto da safra de 1959, de uma terra que produz muito arroz, passarinhos e meninos.

A Serra Negra é marcante na sua vida porque sempre ao abrir a porta da frente de sua casa ela entrava sem pedir licença, trazendo o mistério do seu depois. O que estava depois dela eram os relâmpagos, os trovões, a possibilidade da chuva, a fartura do futuro, a aventura, Fortaleza, São Paulo, a rua Joaquim Alves, da cidade de Várzea Alegre, que dá para todas as ruas do mundo, como o rio da aldeia de Fernando Pessoa que é maior que o Tejo, mesmo sendo seu afluente. Mas a rua Joaquim Alves é bem maior que a Kaiser Josef Strasse, em Freiburg, na Alemanha, porque é na Joaquim Alves onde seu coração lateja, no seu cordão umbilical que ali ficou enterrado e nos dentes de leite ficados no telhado após serem jogados de costas ao som do "Mourão, mourão / pega esse podre / e me dá um são".

José Bitu Moreno apresenta-se de corpo inteiro nesse seu livro "Camisa nova, seu doutor?". São 160 páginas de memórias poéticas onde se instaura um retorno nostálgico a um paraíso perdido. Esse retorno é uma reconstrução do latifúndio memorial do vivente que finalmente descobriu o que está depois da Serra Negra. Todo esse percurso da volta vem escrito numa prosa poética que lembra a "Recherche", de Proust e o memorialismo de Nava. José Bitu, seguindo os conselhos de Tolstoi, primeiro pinta seu quintal para depois pintar o mundo. Seus primeiros golfares de sensibilidade, iniciaram-se perenizando as areias do Riacho do Machado e do Riacho do Meio que foram salgar o rio da infância, o Salgado, prenúncio de mares nunca dantes navegados. Numa de suas raras enchentes o autor foi levado e agora volta montado no signo literário.

Esse Bitu, quando retorna, às vezes nem cita alguns mitos que povoam a história varzealegrense, mas não precisa, ele instiga no leitor a ressurreição de Emílio da Charneca só em citar aquela serra. Traz Papai Raimundo, Padre Zé Otávio, Chico de Amadeu, Pedro de Sousa, Luís Clementino, Zé Costa do Mari, o Cassundé, Dona Eliúa nos aparando de quantos partos pelos quais tenhamos de ser paridos. Ah! Várzea Alegre, Sanharol, Roçado de Dentro, Canidezinho e Mocotó, onde estão os canários cantadores, o galo campina madrugador, a casaca de couro arrancando arroz? Só agora Zé Bitu abriu as gaiolas e eles vieram pousar nos galhos da nossa saudade.

E São Raimundo? Quanta importância desse padroeiro que sai do altar e vai dar nomes aos viventes. São gerações de Raimundo, Raimunda, Mundinha, Mundeiro, Mundica, Mundoca, Doca, Doquinha. Mundo, mundo, vasto mundo se eu me chamasse Raimundo não precisava de Drummond para cantar minha terra. São Raimundo é o pedagogo das lições do céu e tem protegido esse povo que também sabe olhar para cima. José Bitu não sabe que também sou vivente do outro lado daquela serra e por isso minha mãe é Raimunda, meu irmão é Raimundo, meu tio e meu bisavô.

Sob a proteção desse santo, naveguei pelos caminhos gráficos desse Bitu da Serra Negra até a Floresta Negra dos saxões. Mas gostei mais da volta. Podia ser uma volta no misto de Zé Odimar, no ônibus de Hamilton Correia, no expresso Vale do Jaguaribe ou até no caminhão de Zé Mandinga. José Bitu volta bem porque no caminho da ida preocupou-se em construir o caminho da volta. Por isso que montou-se no signo poético, escavou o monturo das lembranças e foi colando os cacos que o tempo estilhaçou e compôs uma aquarela regada com as águas da saudade. Suas lembranças nem sempre são dadivosas pois como balconista no comércio do pai cravou na mente a paisagem desconcertante da rua Governador Sampaio, em Fortaleza. Chapeados, prostitutas, vendedores, caminhões fumacentos, malandros, restos de cereais atapetando o asfalto quente eram os filhos daquela selva.

Esse mundo urbano, entretanto, não instaura a mitologia que brota do seu mundo da infância. Os mitos são os viventes da recepção ao seu retorno. Quanto mais distantes no tempo, mais enraizados na história do seu povo primeiro. A maternal Serra Negra, a casa onde nasceu, e outras serras, casas do olhar, miranças, Gravié, Dos cavalos, Charneca, Crioulos. Mas era a Serra Negra: "sentada na barra, em majestade, com a lombada se dobrando ao lado, parecia touro manso, silencioso, impenetrável, ruminando segredos e eternidade".Tem também Dona Biluca, a avó lá do Inharé; Maria de Bil, com seu martírio e capelinha em sua homenagem; Chica do Rato, a louca; Maria de Abel e seus sonhos surreais; e a pedra de Clarianã.

A casa do avô é outro mito memorial. Construída em 1902, virada para o nascente, flertando com a Serra Negra, é a terceira pele dos viventes seus habitantes. Avoenga essa casa bachelardiana tem fundações que se perdem nas raízes dos cafundós ancestrais. Reconstruir essa memória é colar os fiapos que o tecido do tempo quebrou, é reconstruir o clã da Várzea. É abrir os quatro baús da casa, é recuperar o banho de cuia com sabão da terra, o cacimbão, o pau de lata e a lamparina, o chá de erva cidreira, a galinha choca no canto do quarto por trás da porta, a cura da espinhela caída, do quebranto e da frieira.

Como toda boa obra literária, esse livro de José Bitu Moreno é repleto de dicotomias ou de contrastes em respeito à tradição varzealegrense. Há o rural e o urbano, o passado e o presente, o interior e o exterior, a seca e o inverno, a tradição e a modernidade, a infância e a maturidade, a vida e a morte. Da Serra Negra à Floresta Negra, da Charneca à Vestfália, de Várzea Alegre a Fortaleza, José Bitu constrói uma trajetória real e penosa para depois desconstruí-la, mitificando-a através do signo poético, numa desconstrução do real para o soerguimento da metáfora literária. Tudo isso converge para um texto em prosa poética em que a sensibilidade e a ternura cativam o leitor que conclui ser José Bitu Moreno um escritor que não pode mais deixar de escrever. Nós leitores precisamos de seus escritos. Escreve, José!
Coluna Batista de Lima
Diário de Nordeste
Publicado em 23 de agosto de 2011

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